Um brevíssimo resumo da história do primado de Roma

 


A história do primado de Roma na Igreja é complexa e traz algumas ambiguidades.

Imediatamente após a era apostólica, temos o exemplo da carta de S. Clemente (bispo de Roma) à Igreja de Corinto, intervindo com linguagem de autoridade. É algo bastante significativo, mas não aparece ainda uma teoria ou fundamento para o primado. Nessa mesma época, segundo relata Eusébio, o bispo de Alexandria também escreveu dando "direções" em matéria disciplinar para igrejas fora do Egito. Não significa ainda um exercício de jurisdição.

No mesmo período, S. Inácio de Antioquia louva a Igreja de Roma como "aquela que preside na caridade". É um testemunho claro de alguma espécie de primado em Roma, mas este não aparece ainda como jurisdicional, nem fica evidente o fundamento que sustentaria esse primado (se era a fundação por S. Pedro ou a posição política de Roma).

Ainda no século II, houve uma controvérsia envolvendo a celebração da Páscoa. O papa S. Vítor quis excomungar as igrejas da Ásia que celebravam a Páscoa em data diferente. Mas a reação de S. Polícrates foi de desobedecer à ordem, dizendo: "Não me assusto fácil com palavras terríveis, pois os que são maiores que eu disseram: Devemos obedecer a Deus ao invés dos homens..." (relatado por Eusébio em sua História Eclesiástica). No fim das contas, segundo Eusébio, o papa foi "repreendido" por Sto. Irineu e outros bispos que consideraram que era um erro excomungar aquelas comunidades. E aquelas comunidades, de fato, não foram separadas da união.

É significativo que Vítor assumiu o papel de intervir e tentar excomungar as igrejas que tinham essa prática diferente, mas também é ainda mais notável que suas ordens foram desobedecidas e, no final, as igrejas da Ásia tenham permanecido na unidade da Igreja. Se havia alguma alegação da natureza jurisdicional do primado - o que não aparece claramente -, ela certamente não foi reconhecida por todos, nem pela maioria.

É digno de nota que as divergências na celebração da Páscoa só foram solucionadas definitivamente no concílio de Niceia, que uniformizou a prática. Ou seja, foi necessária uma decisão em comum pelos bispos. Isso mostra como a Igreja realmente era governada.

No século III, houve uma controvérsia que envolveu mais diretamente a autoridade de Roma: a questão do rebatismo de convertidos que haviam sido batizados por hereges ou cismáticos. S. Cipriano de Cartago testemunhou que a Igreja de Roma era "a cátedra de Pedro, a Igreja principal, de onde se origina a unidade sacerdotal", uma afirmação bastante significativa do importante lugar de Roma entre as igrejas. Por outro lado, o próprio Cipriano demonstrou ter um entendimento não-jurisdicional desse primado, recusando obediência às ordens do papa S. Estevão sobre o assunto. Isso é reconhecido pelo Pe. William Jurgens (católico romano), na sua coletânea The Faith of the Early Fathers.

S. Firmiliano tomou o lado de Cipriano na controvérsia, escrevendo como se o papa estivesse já em cisma. Ele denunciou como inúteis as tentativas do papa de "alegar a autoridade dos apóstolos" e a "sucessão de Pedro" em seu favor. Firmiliano é um representante da tradição que prevaleceu na Igreja Ortodoxa, mas sua carta também indica que já naquele tempo os papas alegavam algum tipo de sucessão petrina como fonte de sua autoridade.

Assim como ocorreu com a controvérsia da Páscoa, a questão do rebatismo só foi solucionada definitivamente pelos concílios (e não pela decisão monocrática do bispo de Roma!). A posição de Cipriano sobre o rebatismo foi, de maneira geral, derrotada.

No século IV, o concílio de Niceia não estabeleceu nada de explícito sobre o primado, mas havia um reconhecimento implícito de uma ordem de precedência entre as igrejas, que era a seguinte: Roma, Alexandria e Antioquia. Posteriormente, com os concílios de Constantinopla e Calcedônia, essa ordem foi alterada para: Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém. Foi a chamada "pentarquia", o governo das cinco igrejas principais.

Foi no século IV também que vemos o papa S. Dâmaso - ao menos se a parte do Decretum Gelasianum atribuída a ele é realmente autêntica - explicitar formalmente o motivo de seu primado: é que Roma era a "Sé de Pedro" e tinha recebido esse primado diretamente de Cristo e não de qualquer concílio. Para Dâmaso, as igrejas de Alexandria e Antioquia também eram "Sés de Pedro", mas subordinadas à de Roma.

Depois de Dâmaso, outros papas ensinaram o primado papal com ainda mais ênfase em sua origem divina e natureza jurisdicional. No século V, abundam testemunhos de bispos de Roma ensinando que "não há apelação" de suas decisões, que "todas as igrejas, ainda que nos lugares mais distantes" devem-lhe obediência, etc. Foi também nessa época que viveu S. Leão, bispo de Roma e um dos mais notáveis Padres da Igreja, cujo entendimento do primado é jurisdicional e aduz uma origem divina. Depois dele, S. Gelásio também ensinou o mesmo. Esses papas são ainda hoje celebrados como santos na Igreja Ortodoxa; mas isso não significa, evidentemente, que suas posições sobre o assunto sejam recebidas.

Na mesma época, entretanto, os orientais (particularmente a Igreja de Constantinopla) insistiram em um entendimento do primado como um arranjo baseado no poder temporal. Isso aparece nos cânones dos concílios de Constantinopla e Calcedônia que atribuem à Igreja de Constantinopla o "segundo lugar" após Roma, e "iguais privilégios", sob a alegação de que "é a nova Roma" (ou seja, a nova capital do Império Romano). A Igreja de Roma jamais aceitou essa interpretação do primado, mas tampouco os bispos orientais a retiraram.

A partir dessa época, estava instalada uma divergência na interpretação do governo da Igreja que, em última análise, levaria ao cisma definitivo muitos séculos depois.

Temos nessa época exemplos notáveis de resistência à jurisdição de Roma, como no concílio de Cartago, no século V, que rejeitou a aplicação dos cânones de Sardica (alegados por Roma para receber apelações de membros das demais igrejas em questões disciplinares). Ou, ainda, no caso de S. Basílio que tomou o lado de S. Melécio, bispo de Antioquia não reconhecido por Roma (que reconhecia S. Paulino). É difícil entender esses e outros eventos à luz das teorias papais medievais (ou mesmo as que S. Leão e os papas defendiam já naquela época).

Entretanto, a posição ortodoxa também traz ambiguidades, como quando vemos a concordância dos orientais do sexto concílio ecumênico com a Carta de S. Agatão (que explicitava como nunca antes o primado romano, sua origem divina e infalibilidade). Essa carta foi recebida oficialmente e sem ressalvas, embora o concílio tenha simultaneamente condenado um papa anterior já falecido, Honório, pela heresia monotelita. Isso ilustra a complexidade da questão e os católicos podem alegar que, naquele concílio, foi reconhecido oficialmente a origem divina e a preservação da Sé Romana. No entanto, isso é um erro. É a forma como os orientais interpretavam aquelas "exaltações" da Sé de Roma que diferia dos ocidentais. Para o Oriente, essas prerrogativas e garantias não eram exclusivas nem incondicionais.

Parece que os orientais estavam dispostos a tolerar as alegações de um primado de origem divina por Roma, desde que Roma estivesse de seu lado nas questões de fé e desde que algum grau de independência fosse garantida às suas igrejas (inclusive com a liberdade de criticar Roma, como se vê no concílio Quinissexto no século VII). Quando sentiram que isso não estava mais acontecendo (com a inserção do filioque no Credo), os orientais definitivamente rejeitaram as alegações papais de autoridade.

A atitude oriental pode ser resumida na frase do quinto concílio ecumênico dirigida ao papa Vigílio: "Se sua santidade está disposta a se encontrar conosco e com os santíssimos patriarcas, e os bispos mais religiosos [isto é, concordando conosco]... nós vamos te reconhecer como nosso Cabeça e Primaz". Há um "se" condicional bastante significativo nessa frase.

Algumas décadas antes de Honório, temos o curioso caso do papa S. Gregório. Ele escreveu contra o título de "bispo universal" - que posteriormente foi usado pelos papas - dizendo que era sinal de orgulho, que nenhum bispo poderia se colocar acima dos demais, etc. Em algumas de suas cartas, transparece um entendimento não jurisdicional do primado de Roma. Em outras, porém, ele afirma que a Igreja de Roma é "colocada acima de todas", e isso "por ordem de Deus". Ele também repete que a Igreja de Constantinopla estava "sujeita" a Roma, algo impensável para um ortodoxo hoje. É até difícil encerrar suas afirmações em uma síntese coerente, por isso mesmo S. Gregório talvez seja o representante perfeito da Igreja do primeiro milênio nesse assunto: reconhecia o primado de Roma e até algumas consequências jurisdicionais (princípio que prevaleceu e foi absurdamente exagerado no Ocidente), mas limitando-o por uma forte expressão da necessidade de comunhão e consenso entre as igrejas (princípio que prevaleceu no Oriente).

É impossível ignorar que o entendimento do primado de Roma foi influenciado grandemente por uma sucessão de fraudes documentais, como as Falsas Decretais e a Doação de Constantino. Isso é um sinal claro de como as coisas saíram do controle no Ocidente.

No fim das contas, é difícil avaliar a história da Igreja e entender cada controvérsia, cada documento e cada afirmação de Padres da Igreja ou de concílios. Os dois entendimentos tem algum grau de razoabilidade. O entendimento católico romano é basicamente: Cristo deu a Pedro as chaves do reino do céus, como lemos no Evangelho, e um primado petrino foi sempre reconhecido; Roma deteve também o primado e desde tempos remotos alegou sua origem petrina. Dentro dessa lógica, as dificuldades de alguns Padres e concílios nos primeiros séculos é explicada pelo desenvolvimento da doutrina, ou seja: o primado estava lá, mas somos obrigados a reconhecer que nem todas as suas implicações e prerrogativas foram entendidas por todos desde o início.

Do lado ortodoxo, afirma-se que todos os bispos são sucessores de S. Pedro, que sua autoridade é de certo modo difusa em todo o episcopado. A ênfase ortodoxa no consenso e concordância encaixa-se plenamente nas ênfases dos Evangelhos.