O julgamento final


Há numerosos testemunhos na Sagrada Escritura sobre a realidade e indisputabilidade do Julgamento universal futuro: Jo 5:22, 27-29; Mt 16:27; 7:21-23; 11:22-29; 12:36, 41-42; 13:37-43; 19:28-30; 24:30; 25:31-46; At 17:31; Judas 14-15; 2 Co 5:10; Ro 2:5, 7:14:10, 1 Co 4:5; Ef 6:8; Col 3:24-2; 2 Tess 1:6-10; 2 Tim 4:1: Ap 20:11-15. Desses testemunhos a mais completa descrição é dada em Mateus 25:31-46 ("E quando o Filho do Homem vier em Sua glória..."); de acordo com essa descrição podemos tirar conclusões a respeito das características do julgamento. Ele será:

Universal, isto é, extensivo a todos os homens vivos e mortos, bons e maus, e de acordo com outras indicações dadas na palavra de Deus, até aos próprios anjos decaídos (2 Pe 2:4; Judas 6);

solene e aberto, pois o Juiz aparecerá em toda a Sua glória com todos os Seus anjos diante da face do mundo todo; estrito e terrível, executando em toda Justiça de Deus — ele será "o dia de ira e da manifestação da justiça de Deus" (Ro 2:5);

final e definitivo, determinando por toda a eternidade o destino de cada um que for julgado. O resultado do julgamento será a recompensa eterna — benção para os justos e tormento para os malignos que forem condenados.

Descrevendo da maneira mais brilhante e jubilosa as características da vida eterna dos justos depois do Julgamento universal, a palavra de Deus fala da mesma maneira positiva e certeza a respeito dos tormentos eternos dos homens malignos. "Apartai-vos de mim, malditos para o fogo eterno," o Filho do Homem dirá no dia do Julgamento: "E irão estes para o tormento eterno, mas os justos para a vida eterna" (Mt 25: 41-46). Esta condição de condenação é apresentada na Sagrada Escritura pintada como um lugar de tormento e é chamada de Gehenna. A imagem é tomada do vale de Hinnon nos arredores de Jerusalém, onde eram feitas as execuções, e também era jogada todo tipo de coisa suja, e como resultado havia um fogo queimando constantemente como defesa contra infecções. O Senhor disse: "E se tua mão te escandalizar, corta-a: melhor é para ti entrares na vida aleijado do que, tendo duas mãos, ires para o inferno (gehenna), para o fogo que nunca se apaga, onde seu verme não morre e o fogo nunca se apaga" (Mc 9:43-44 e também 45-48). "Haverá choro e ranger de dentes," o Salvador repete muitas vezes a respeito da Gehenna (Mt 8:12 e outros lugares). No Apocalipse de São João Teólogo esse lugar ou condição é chamado de "lago de fogo" (Ap 19:20). E no Apóstolo Paulo nós lemos: "Como labareda de fogo, tomando vingança dos que não conhecem a Deus e dos que não obedecem ao evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo" (2 Tess 1:9) . As imagens do "verme que não morre" e do "fogo que nunca se apaga" são evidentemente simbólicas e indicam a severidade dos tormentos. (Por "simbólica" nossa linguagem contemporânea racionalista usualmente entende "não real, não mais do que uma imagem" — uma definição que daria uma ideia muito confusa da vida na era futura. Com respeito às imagens nas quais futuras bênçãos e futuros tormentos são descritos, deve-se repetir as palavras do anjo a São Macário de Alexandria: "Aceita as coisas terrenas aqui como a mais fraca descrição das coisas celestes"; certamente tais imagens como "o verme" e o "fogo" correspondem a realidades que são assustadoramente além de nossa imaginação — e uma realidade que, enquanto não "material" de acordo com nossa experiência em coisas terrenas, é no entanto de alguma forma "corporal," correspondendo ao corpo espiritual ressuscitado que as sentirá! Deve-se ler a assustadora experiência "real" do "verme que não morre" por um filho espiritual de São Serafim de Sarov ["Are There Tortures in Hell?" no Orthodox Life, 1970, nº 5] de modo a se ganhar uma certa indicação da natureza dos futuros na Gehenna). São João Damasceno diz: "Os pecadores serão entregues ao fogo eterno, que não será um fogo material como o que estamos acostumados, mas um fogo que só Deus conhece" (Exposição Exata da Fé Ortodoxa, Livro 4, 27).

"Eu sei," escreve São João Crisóstomo, "que muitos são aterrorizados só pela gehenna, mas eu acho que a privação daquela glória (do Reino de Deus) é um tormento maior que a gehenna" (Homilia 23, sobre São Mateus). "Essa privação das coisas boas," ele reflete em outro lugar, "causará tal tormento, tal tristeza e opressão, que mesmo que nenhuma punição espere aqueles que pecam aqui, em si mesma (essa privação) pode atormentar e perturbar nossas almas mais poderosamente que o tormento da gehenna; muitas pessoas tolas desejam só serem libertadas da gehenna; mas eu considero muito mais atormentadora a punição de não estar naquela glória. E eu acho que aquele que é privado dessa glória deveria não chorar tanto pelos tormentos na gehenna quanto por ser privado das coisas boas do céu, pois só isso é a mais cruel de todas as punições" (Homilia 1). Pode-se ler uma explicação similar em Santo Irineu de Lyon (Contra as heresias, Livro 5, 27).

São Gregório Teólogo ensina: "Reconhece a ressurreição, o julgamento, e a recompensa dos justos pelo julgamento de Deus. E essa recompensa para esses que foram purificados no coração será luz, isto é, Deus visível e conhecido de acordo com o grau de pureza de cada um, que nós chamamos também de Reino do Céu. Mas para aqueles que são cegos na mente, isto é, para aqueles que se tornaram estranhos para Deus, de acordo com o grau de sua presente cegueira, serão trevas" (Homilia 40, sobre o Batismo).

A Igreja, baseando-se na palavra de Deus, reconhece os tormentos na gehenna como sendo eterno e sem fim, e por essa razão condenou no Quinto Concílio Ecumênico o falso ensinamento dos origenistas que diziam que os demônios e pessoas ímpias sofreriam no inferno somente por um certo tempo definido, e então seriam devolvidos à sua condição original de inocência (apokatastasis em grego). A condenação do Juízo Final é chamada no Apocalipse de São João o Teólogo de "segunda morte" (Ap 20:14).

Uma tentativa de entender os tormentos da gehenna num sentido relativo, entender a eternidade como algum tipo de era ou período — talvez longo, mas mesmo assim tendo um fim — foi feita na antigüidade, assim como é feita hoje; essa visão em geral nega a realidade desses tormentos. Nessa tentativa são trazidas à tona concepções de um tipo lógico: a desarmonia entre tais tormentos e a bondade de Deus é apontada, assim como a aparente desproporção entre crimes que são temporais e a eternidade das punições por pecado, assim como também a desarmonia entre essas punições eternas e o fim ultimo da criação do homem, que é a bênção de Deus.

Mas não cabe a nós definir os limites entre a inexprimível misericórdia de Deus e Sua justiça. Nós sabemos que o Senhor "quer que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade" (1 Tim 2:4); mas o homem é capaz, através de sua própria vontade maligna, de rejeitar a misericórdia de Deus e os meios de salvação. Crisóstomo, interpretando a descrição do Juízo Final, demarca: "Quando Ele (o Senhor) falou acerca do Reino, depois de dizer: 'Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino', Ele acrescenta, que está 'preparado para nós desde a fundação do mundo' (Mt 25:34), mas quando fala sobre o fogo, Ele não se expressa assim, mas acrescenta: que está 'preparado para o diabo e seus anjos' (Mt 25:41). Pois eu prepararei para vós o Reino, mas o fogo Eu prepararei não para vós mas para o diabo e seus anjos. Mas desde que vós vos jogastes no fogo, então acuseis a vós mesmos por isso" (Homilia 70, sobre Mateus).

Não temos o direito de entender as palavras do Senhor só condicionalmente, como ameaça ou como um certo meio pedagógico aplicado pelo Salvador. Se nós entendermos dessa maneira erramos, já que o Senhor não instila em nós nenhum desses entendimentos e nós nos sujeitamos à ira de Deus de acordo com a palavra do Salvador: "porque o ímpio provocou Deus? Pois ele disse em seu coração. Ele não inquirirá".

Além disso, o próprio conceito de "ira" em relação a Deus é condicional e antropomórfico, como aprendemos do ensinamento de Santo Antônio o Grande (conhecido entre nós como Santo Antão), que diz: "Deus é bom, desapaixonado e imutável. Agora se alguém pensa que é razoável e verdadeiro afirmar que Deus não muda, pode-se perguntar como, nesse caso, é possível se falar de Deus rejubilando sobre aqueles são bons e mostrando misericórdia para aqueles que o honram, enquanto afastando-se dos maldosos e ficando raivoso com os pecadores. Para essa pergunta deve ser respondido que Deus não rejubila nem fica com raiva, pois rejubilar e ficar ofendido são paixões; nem Ele se comove pelos dons daqueles que o honram, pois isso significaria que Ele é movido por prazer... Ele é bom, e Ele só concede bênçãos e nunca provoca dano, permanecendo sempre o mesmo. Nós homens, de outro lado, se permanecemos bons assemelhando-nos a Deus, somos unidos a Ele; mas se nós nos tornarmos malignos não assemelhando-nos a Deus, tornando-nos malignos nós fazemos Dele nosso inimigo. Não é que Ele fique raivoso conosco de maneira arbitrária, mas são os nossos pecados que impedem que Deus brilhe dentro de nós, e nos expõe aos demônios que nos punem. E se por orações e atos de compaixão nós recebemos alívio de nossos pecados, isso não significa que nós tenhamos ganho de Deus e façamo-lo mudar, mas sim que através dos nossos atos e nosso virar-se para Deus nós curamos nossa malignidade e assim mais uma vez nós nos regozijamos com a bondade de Deus. Assim dizer que Deus afasta-Se dos malignos é como dizer que o sol se esconde dos cegos" (Philokalia, vol 1, texto 150; tradução inglesa por Palmer—Sherrara—Ware, p. 352).

Digno de atenção também é o comentário simples a esse respeito do Bispo Teófano o Recluso: "Os justos irão para a vida eterna, mas os pecadores satanizados para os tormentos eternos, em comunhão com os demônios. Esses tormentos terminarão? Se é possível que esse satanismo acabe, então esses tormentos também podem acabar. Mas até então nós devemos acreditar que assim como a vida eterna não terá fim, assim também os tormentos eternos que ameaçam os pecadores não terão fim. Nenhuma conjectura pode mostrar a possibilidade do fim do satanismo. O que satanás viu depois da sua queda! Quanto poder de Deus foi revelado! Como ele mesmo foi batido pelo poder da Cruz do Senhor! Como até agora toda a sua astúcia e malícia são derrotadas por esse poder! Mas ele ainda é incorrigível, ele constantemente se opõe; e quanto mais longe ele vai, mais teimoso ele se torna. Não há esperança nenhuma dele ser corrigido! E se não há esperança para ele, não há esperança também para os homens que tornam-se satanizados por sua influencia. Isso significa que deve haver inferno com tormentos eternos".

Os escritos dos santos ascetas cristãos indica que quanto mais alta a consciência moral, mais agudo se torna o sentimento de responsabilidade moral, o medo de ofender Deus, e consciência da inevitável punição por se desviar dos mandamentos de Deus. Mas exatamente o mesmo grau é o que aumenta a esperança na misericórdia de Deus. A esperança nela e o pedir por ela ao Senhor é para cada um de nós uma obrigação e uma consolação.

- Padre Michael Pomazansky, Teologia dogmática ortodoxa

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