Participantes da natureza divina


O propósito da vida cristã, que Serafim descreveu como a aquisição do Espírito Santo de Deus, pode igualmente ser bem definida em termos de deificação. Basílio descreveu o homem como uma criatura que recebeu a ordem de tornar-se um deus; Atanásio, como sabemos, disse que Deus tornou-se homem para que o homem pudesse tornar-se Deus. "Em meu reino, disse Cristo, serei Deus convosco como deuses" (Cânon para as matinas da Quinta-Feira Santa, Ode 4, Tropário 3). Este, de acordo com os ensinamentos da Igreja Ortodoxa, é o objetivo final que cada cristão ortodoxo deve atingir: tornar-se Deus, alcançar a theosis, "deificação" ou "divinização," pois para a ortodoxia, a salvação e redenção do homem significam sua deificação.

Sob a doutrina de deificação existe a ideia do homem feito de acordo com a imagem e semelhança de Deus, a Divina Trindade. "Para que eles sejam todos um," rezou Cristo na Última Santa Ceia, "como tu, Pai, és em mim, e eu em ti, para que também eles sejam em nós" (João 17:21). Assim como as três pessoas da Trindade "vivem" umas nas outras em um movimento contínuo de amor, o homem feito à imagem da Trindade é chamado para viver no Deus Trino. Cristo reza para que nós possamos fazer parte da vida da Trindade, do movimento de amor que circula entre as três pessoas divinas; Ele reza para que possamos ser levados para a Divindade. Os santos, como coloca Máximo, o Confessor, são aqueles que expressam a Santíssima Trindade em si mesmos. Esta ideia de uma união pessoal e organizada entre Deus e o homem — Deus vivendo no homem e o homem Nele — é um tema constante no evangelho de São João e também nas Epístolas de São Paulo, que vê a vida cristã, acima de tudo, como uma vida "em Cristo". A mesma ideia é vista no famoso texto: "Para que por elas (as promessas de Cristo) sejais feitos participantes da natureza divina" (2 Pedro 1:4). É importante ter em mente este ensinamento do Novo Testamento. A doutrina ortodoxa de deificação, longe de não ter base escritural (como às vezes se pensa), tem base bíblica muito sólida, não apenas em 2 Pedro, mas em Paulo e no Quarto Evangelho.

A ideia de deificação deve sempre ser entendida à luz da distinção entre a essência de Deus e Suas energias. A união com Deus significa união com as energias divinas, não com a essência divina: quando fala de deificação e união, a Igreja Ortodoxa rejeita qualquer forma de panteísmo.

Há outro ponto de igual importância que está muito ligado a este. A união mística entre Deus e o Homem é verdadeira, apesar de Criador e criatura não estarem aqui fundidos um ao outro como um ser único. Ao contrário das religiões orientais que ensinam que o homem é sugado ou absorvido pela divindade, a teologia mística ortodoxa sempre insistiu que o homem, apesar de muito ligado a Deus, mantém a sua integridade individual. O homem, quando deificado, permanece distinto (e não separado) de Deus. O mistério da Trindade é um mistério de unidade em diversidade, e aqueles que expressam a Trindade em si não sacrificam suas características individuais. Quando São Máximo escreveu que "Deus e aqueles merecedores de Deus tem a mesma e única energia" (Ambigua, 91), ele não quis dizer que os santos perdem o livre arbítrio, mas que, quando deificados, voluntariamente e com amor combinam suas vontades com a Vontade de Deus. Nem o homem, quando "se torna Deus," deixa de ser humano: "Nós permanecemos criaturas enquanto nos tornamos, por graça, deuses, assim como Cristo permaneceu Deus quando tornou-se homem na Encarnação (V. Lossky, The Mystical Theology of teh Eastern Church, p. 87). O homem não torna-se Deus por natureza, mas é meramente um "deus criado," um deus por graça.

A deificação é algo que envolve o corpo. Já que o homem é uma unidade de corpo e alma, e já que o Cristo Encarnado salvou e resgatou o homem como um todo, conclui-se que "o corpo humano é deificado ao mesmo tempo que sua alma" (Máximo). Na divina semelhança a que o homem é convidado a realizar em si mesmo, o corpo tem importância. "Vossos membros são o templo do Espírito Santo," escreveu São Paulo (1 Cor. 6:19). "Assim, que pela misericórdia de Deus vos rogo, irmãos, que ofereçais os vossos corpos como um sacrifício vivo a Deus" (Romanos 12:1). Deve-se esperar a completa deificação do corpo, no entanto, até o Último Dia, pois nesta vida a glória dos santos é, como regra, um esplendor interno, um esplendor apenas da alma; mas quando os justos voltarem dos mortos vestidos no corpo espiritual, então a santidade será manifestada externamente. "No dia da Ressurreição a glória do Espírito Santo virá de dentro para fora, cobrindo e forrando os corpos dos santos — a glória que tinham antes escondida em suas almas. O que agora tem o homem, mais tarde surge em seu corpo" (Homilias da Macário, 5, 9). É esta transfiguração do "corpo Ressuscitado" que o iconógrafo tenta reproduzir. Assim, enquanto preserva distintos traços das características fisionômicas dos santos, ele evita, de forma deliberada, pintar um retrato realista e "fotográfico." Pintar o homem como ele é agora, é pintá-lo em seu estado ainda decaído, com o corpo "terrestre" e não "celestial". Os corpos dos santos serão transfigurados externamente pela Luz divina, assim como o de Cristo foi transfigurado no Monte Tabor. "Também devemos aguardar a aurora do corpo" (Minucius Felix, Octavius, 34).

Mas mesmo nesta vida, alguns santos provaram os primeiros frutos da glorificação visível e material. São Serafim é o mais conhecido, mas não é o único exemplo. Quando Arsênio, o Grande estava orando, seus discípulos o viram "como um fogo" (Apophthegmata, P.G. 65); e é registrado de outro Padre do Deserto: "Como Moisés recebeu a imagem da glória de Adão, quando seu rosto foi glorificado, então a face de Abba Pambo mostrou-se como um raio e ele tornou-se rei sentado em seu trono" (Apophthemagta, P.G. 65). Epifâniom em seu Vida de Sérgio de Radonezh, relata que o corpo do santo mostrou-se em glória depois da morte. Algumas vezes é dito, e com certa verdade, que a transfiguração corporal pela luz divina corresponde, dentre os santos ortodoxos, ao recebimento dos estigmas de Cristo para os santos ocidentais. Porém, não se deve delinear um contraste absoluto neste caso. Episódios de glorificação material também são encontrados no ocidente, como por exemplo o caso da inglesa, Evelyn Underhill (1875-1941): um amigo relata como em uma ocasião seu rosto estava transfigurado em luz (toda a narrativa faz lembrar São Serafim: ver The Letters of Evelyn Underhill, editada Charles Williams, Londres, 1943). (A estigmatização também não é desconhecida no leste: na vida copta de São Macário do Egito, sabe-se que um querubim apareceu para ele, "mediu seu peito" e "crucificou-o na terra"). Nas palavras de Gregório Palamas: "nas próximas eras o corpo compartilhará com a alma as bênçãos indescritíveis; é certo que devem compartilhar, na medida do possível, agora também" (The Tome of The Holy Mountain, P.G. 150).

Porque os ortodoxos estão convencidos de que o corpo é santificado junto com a alma, eles têm tremendo respeito às relíquias dos santos. Como os católicos romanos, ortodoxos acreditam que a graça de Deus presente no corpo dos santos durante a vida permanece ativa em suas relíquias depois da morte, e que Deus usa estas relíquias como um canal de poder divino e instrumento de cura. Em alguns casos os corpos dos santos foram milagrosamente preservados da corrupção, mas mesmo onde isto não aconteceu, os ortodoxos mostram a mesma veneração aos ossos. Esta reverência às relíquias não é fruto de ignorância e superstição, mas nasce de uma teologia do corpo altamente desenvolvida.

Não apenas o corpo humano, mas toda a criação material será, ao final, transfigurada: "E vi um céu novo e uma terra nova. Porque o primeiro céu e a primeira terra se foram" (Apocalipse 21:1). O homem resgatado não deve ser separado de toda criação, esta é que deve ser salva junto com ele (ícones, como já vimos, são os primeiros frutos da redenção da matéria). "A própria criação espera com impaciência a manifestação dos filhos de Deus... pois ela será liberta da escravidão da corrupção, para participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus. Sabemos que até hoje ela vem sofrendo as dores do parto" (Romanos 8:19-22). Esta ideia de redenção cósmica é baseada, assim como as doutrinas ortodoxas sobre o corpo humano e sobre os ícones, em uma correta compreensão da Encarnação: Cristo tomou a carne — que é de ordem material — e tornou possível a redenção e metamorfose de toda criação — tanto a imaterial quanto a física.

Esta conversa sobre deificação e união com Deus, sobre a transfiguração do corpo e a redenção cósmica, pode soar muito distante da experiência dos cristãos comuns; mas qualquer que tirar essa conclusão entendeu tudo errado sobre a visão ortodoxa da theosis. Para impedir essa interpretação errada, seis pontos devem ser lembrados.

Primeiro, deificação não é algo reservado para uns poucos iniciados, mas algo destinado a todos igualmente. A Igreja Ortodoxa crê que este é o propósito normal para todos os cristãos, sem exceção. Certamente, só seremos plenamente deificados no Último Dia; mas para cada um de nós o processo de divinização deve começar aqui e agora, nesta vida presente. É verdade que nesta vida pouquíssimos, de fato, atingem plena união mística com Deus. Mas todo cristão verdadeiro busca amar a Deus e cumprir Seus mandamentos; e na medida em que um homem busca sinceramente fazer isso, por mais fracas que sejam suas tentativas e por mais que ele falhe, já está em algum grau deificado.

Segundo, o fato de um homem estar sendo deificado não significa que cessa de ser consciente do pecado. Muito pelo contrário, a deificação sempre pressupõe um ato contínuo de arrependimento. Um santo pode ser muito avançado no caminho da santidade e, no entanto, não cessa por isso de usar as palavras da Oração de Jesus: 'Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tende piedade de mim, um pecador'. O pai Siluan do Monte Athos costumava dizer a si mesmo: 'mantenha sua mente no inferno e não desespere'; outros santos ortodoxos repetiram as palavras: 'todos serão salvos, e somente eu serei condenado'. Autores espirituais do Oriente dão grande valor ao 'dom das lágrimas'. A teologia mística ortodoxa é uma teologia da glória e da transfiguração, mas é também uma teologia da penitência.

Em terceiro lugar, não há nada esotérico ou extraordinário sobre os métodos que devemos usar para sermos deificados. Se um homem pergunta 'Como posso tornar-me deus?', a resposta é muito simples: vá à igreja, receba os sacramentos regularmente, ore a Deus 'em espírito e verdade', leia os Evangelhos, observe os mandamentos. Este último item - 'observe os mandamentos' - nunca pode ser esquecido. A ortodoxia, não menos que o Cristianismo ocidental, firmemente rejeita o tipo de misticismo que procura dispensar normais morais.

Quarto, deificação não é um processo solitário e sim 'social'. Dissemos que a deificação significa 'observa os mandamentos'; e esses mandamentos foram brevemente descritos por Cristo como amor a Deus e amor ao próximo. As duas formas de amor são inseparáveis. Um homem só pode amar seu próximo como a si mesmo se ama a Deus acima de tudo; e um homem não pode amar a Deus se não ama seu próximo (1 João 4:20). Assim, não há nada egoísta sobre a deificação; pois apenas aquele que ama seu próximo pode ser deificado. 'De nosso próximo vem a vida e de nosso próximo a morte', disse Antão do Egito. 'Se ganhamos nosso próximo ganhamos a Deus, mas se levamos nosso próximo a cair pecamos contra Cristo' (Apophthegmata, Antão 9). O homem, feito à imagem da Trindade, somente pode realizar a semelhança divina se vive uma vida em comum como a Trindade vive: como as três pessoas da Divindade 'habitam' uma na outra, assim um homem deve 'habitar' em seu irmão, vivendo não para si mesmo, mas em e por outros. 'Se fosse possível', disse um dos Padres do Deserto, 'achar um leproso e dar-lhe meu corpo e levar o dele, eu o faria alegremente. Pois isso é amor perfeito' (Agatão 26). Tal é a natureza verdadeira da theosis.

Quinto, amor a Deus e aos outros homens deve ser prático: a ortodoxia rejeita toda forma de quietismo, todos os tipos de amor que não resultam em ação. A deificação, enquanto inclui as alturas da experiência mística, também possui um aspecto prosaico e pé-no-chão. Quando pensamos na deificação, devemos lembrar dos hesicastas orando em silêncio e de S. Serafim com sua face transfigurada; mas também devemos lembrar de S. Basílio cuidando dos doentes no hospital de Cesaréia, de S. João ajudando os pobres em Alexandria, de S. Sérgio em suas roupas sujas, trabalhando como camponês na horta para fornecer comida aos visitantes do mosteiro. Estes não são caminhos diferentes, mas um só.

Finalmente, deificação pressupõe vida na Igreja, vida nos sacramentos. Theosis, de acordo com a semelhança da Trindade, envolve a vida em comum, mas somente na irmandade da Igreja pode essa vida em comum ser propriamente realizada. Igreja e sacramentos são meios apontados por Deus pelos quais o homem deve adquirir o Espírito santificador e ser transformado na semelhança divina.

- Bispo Calisto Ware, A Igreja Ortodoxa

Nenhum comentário:

Postar um comentário