A morte de Cristo


A encarnação é um ato de philanthropia (caridade) de Deus, de Sua benevolência para com a espécie humana. Muitos escritores orientais, falando da encarnação sob este ponto de vista, dizem que mesmo que o homem nunca tivesse decaído, Deus em Seu amor pela humanidade ainda assim se tornaria homem: a encarnação deve ser entendida como parte do propósito eterno de Deus e não simplesmente como uma resposta à queda. Tal era a visão de Máximo, o Confessor, e de Isaque, o Sírio, e também de alguns escritores ocidentais, com maior ênfase Duns Scotus (1265-1308).

Pelo fato de o homem ter decaído, a Encarnação é, além de um ato de amor, um ato de salvação. Jesus Cristo, ao unir homem e Deus em Sua própria pessoa, reabriu o caminho de união entre Deus e a humanidade. Em pessoa, Cristo mostrou qual a verdadeira "semelhança de Deus" e por sua redenção e sacrifício vitorioso restabeleceu esta semelhança ao alcance do homem. Cristo, o segundo Adão, veio ao mundo e reverteu os efeitos da desobediência do primeiro Adão.

Deus verdadeiro e homem verdadeiro; como colocou o Bispo Teófano, o Recluso: "Atrás do véu da carne de Cristo, os cristãos adoram o Deus Triuno." Estas palavras colocam-nos face a face ao que pode ser a característica mais extraordinária da abordagem ortodoxa sobre o Cristo encarnado: uma sensação irresistível da Sua glória divina. Há dois momentos na vida de Deus em que esta glória foi especialmente manifestada: A transfiguração, quando, no Monte Tabor, a Luz incriada da Sua divindade visivelmente atravessou as vestimentas de Sua carne; e a Ressurreição, quando o túmulo é aberto pela pressão da vida divina, e Cristo retorna triunfante dos mortos. Dá-se tremenda ênfase a ambos os eventos durante a adoração e espiritualidade ortodoxas. No calendário bizantino, a Transfiguração é reconhecida como uma das Doze Grandes Festas e desfruta maior eminência do que no Ocidente; e já falamos qual o lugar que a Luz incriada de Tabor ocupa dentro da doutrina ortodoxa de oração. Quanto à Ressurreição, seu sentido preenche toda a vida da Igreja Ortodoxa: por todas as vicissitudes de sua história, a Igreja Oriental foi capaz de manter algo do espírito dos primeiros tempos do Cristianismo. A Liturgia ainda cultua o elemento de puro júbilo na Ressurreição do Senhor, que encontramos em muitos escritos cristãos dos primeiros tempos (P. Hammond, The Waters of Marah, p. 20).

O tema da Ressurreição de Cristo une todos os conceitos teológicos e realidades do Cristianismo oriental em um conjunto harmônico (O. Rousseau, Incarnation et anthropologie en oriente et en ocident, in Irénikon, vol. 26, 1953, p. 373).

No entanto, seria errado pensar na Ortodoxia apenas como um culto à glória divina de Cristo, à Transfiguração e à Ressurreição, e nada mais. Não importa quão grande é a devoção à glória divina de Nosso Senhor, os ortodoxos não deixam de lado a Sua humanidade. Considere, por exemplo, o amor dos ortodoxos pela Terra Santa: nada pode superar a intensa reverência feita por camponeses russos aos lugares exatos onde o Cristo Encarnado viveu, onde como homem comeu, ensinou, sofreu e morreu. Nem o sentido de júbilo pela Ressurreição leva a Ortodoxia a minimizar a importância da Cruz. Imagens da Crucifixão não são mais importantes em Igrejas não-ortodoxas do que na Igreja Ortodoxa.

Deve-se, assim, entender que é errada a comum asserção de que o Oriente concentra-se no Cristo Ressuscitado e o Ocidente no Cristo Crucificado. Se fizermos uma comparação, é mais exato dizer que ambos vêem a Crucifixão de forma um pouco diferente. A atitude ortodoxa perante a Crucifixão é melhor compreendida nos hinos cantados na sexta-feira Santa, como os seguintes.
Aquele que veste-se de luz como roupas,
estava nu em Seu julgamento.
Em Seu rosto recebeu sopros
das mãos que Ele criou.
A multidão sem leis pregava à Cruz
o Deus de glória.
A Igreja Ortodoxa, na Sexta-Feira Santa, não vê isoladamente a dor e o sofrimento humanos de Cristo, mas sim o contraste entre Sua humilhação externa e Sua glória interna. Os ortodoxos não vêem apenas o lado humano do Cristo sofrendo, mas o Deus sofrendo:
Hoje está suspenso no Lenho
o que suspendeu a Terra por entre as águas.
Uma coroa de espinhos veste
Aquele que é o rei dos anjos.
Ele está envolvido em púrpura e zombaria,
Aquele que envolve os céus de nuvens.
Sob o véu da carne rompida e sangrenta, os ortodoxos ainda apreciam o Deus Triuno. Até o Gólgota é uma Teofania; até na Sexta-Feira Santa a Igreja entoa notas da alegria da Ressurreição:
Nós adoramos Tua Paixão, ó Cristo:
Mostra-nos Tua gloriosa Ressurreição!
Eu glorifico Teus sofrimentos,
Eu louvo Teu sepultamento e Tua Ressurreição.
Clamando, Senhor, glória a Ti!
A Crucifixão não está separada da Ressurreição, pois ambas são um ato único. O Calvário é sempre visto à luz do sepulcro vazio; a Cruz é um símbolo (emblema) de vitória. Quando os ortodoxos pensam no Cristo Crucificado, não pensam apenas no Seu sofrimento e desolação; eles pensam no Cristo, o vitorioso, no Cristo Rei, reinando em triunfo na Cruz.

O Senhor veio ao mundo e viveu entre os homens para destruir a tirania do Demônio e libertá-los. Na Cruz, Ele triunfou sobre os poderes que se opunham a Ele, quando o sol escureceu e a terra estremeceu, quando as sepulturas abriram-se e os corpos dos santos levantaram-se. Cristo é nosso Rei vitorioso, não apesar da Crucifixão, mas por causa dela: "Eu O chamo de rei porque o vejo crucificado" (João Crisóstomo, Second Sermon on the Cross and the Robber, 3, P.G. 49, 413).

Este é o espírito de adoração dos cristãos ortodoxos à morte de Cristo na Cruz. Entre esta abordagem da Crucifixão e aquela do Ocidente medieval e moderna existem, é claro, muitos pontos de contato; no entanto, na abordagem ocidental existem também determinados aspectos que deixam os ortodoxos apreensivos. O Ocidente, ao que parece, tende a pensar na Crucifixão isoladamente, separando-a de forma brusca da Ressurreição. Como resultado, a visão do Cristo como um Deus sofredor é substituída, em prática, pela figura de um Cristo-Homem sofredor: o adorador ocidental, quando medita perante a Cruz, é estimulado com muita freqüência a sentir uma mórbida compaixão ao Homem das Dores, em vez de glorificar o rei vitorioso e triunfante. Ortodoxos sentem-se muito à vontade nas letras do grande hino latino de Venâncio Fortunato (530-609), Pange lingua, que saúda a Cruz com um emblema de vitória:
Canta, minha boca, a batalha gloriosa,
Canta o final da briga;
Agora sobre a Cruz, nosso troféu,
Soa alto o hino triunfal:
Conta como o Cristo, redentor do mundo,
Como vítima venceu o dia.
Da mesma forma sentem-se no hino Vexilla regis, também de Fortunato:
Cumprido está o que falou Davi
Em canto profético dos antigos:
Dentre as nações, disse ele,
Reinou e triunfou da Cruz.
No entanto, ortodoxos sentem-se menos à vontade com composições do final da Idade Média, tais como Stabat Mater:
Pelo pecado de seu povo, em agonia,
Lá ela viu a vítima definhar-se,
Sangrar atormentado, sangrar e morrer:
Viu o Senhor sagrado ser levado;
Viu seu Filho à morte abandonado;
Ouviu Seu último suspiro de morte
É mister dizer que o Stabat Mater, em suas sessenta linhas, não faz referência alguma à Ressurreição.

Onde a Ortodoxia vê sobretudo o Cristo vitorioso, o Ocidente do final da Idade Média e pós-medieval vê sobretudo Cristo como vítima. Enquanto a Ortodoxia interpreta a Crucificação primordialmente como um ato de vitória triunfante sobre os poderes do mal, o oeste, desde os tempos de Anselmo de Canterbury (1033-1109), tende a pensar na Cruz em termos jurídicos e penais, como um ato de satisfação ou substituição destinado a aplacar a ira de um Pai raivoso.

No entanto, este contraste não deve ser muito estimulado. Escritores orientais, assim como os ocidentais, aplicaram linguagem jurídica e penal à Crucifixão, e escritores ocidentais, assim como os orientais, nunca deixaram de considerar a Sexta-Feira Santa como um momento de vitória. Recentemente, no Ocidente, houve revitalização da idéia patrística do Christus Victor, semelhante na teologia, na espiritualidade e na arte; e os ortodoxos estão bem satisfeitos que isso possa acontecer.

- Bispo Calisto Ware, A Igreja Ortodoxa

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